Hoje é dia da Consciência Negra e recebi do Depto. de Letras da UFS o link para um artigo sobre os 250 anos da oficialização da educação no Brasil, fazendo uma ponte com o caso da Dra. Ana Flávia Pinto. Não concordo com algumas coisas, mas o texto certamente contribui pra quem é formador de opinião.
Reproduzo na íntegra o artigo; é grande, mas vale a pena ler!
O texto está disponível também no link: http://www.ufs.br/?pg=artigo&id=130
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E, claro, fica aquele abraço para a broderagem que contribuiu para a formação da cultura brasileira!
Que a consciência seja de todos.
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Parabéns para a Educação no Brasil!
Maria Aparecida Silva Ribeiro
No ano em que se comemoram os duzentos e cinqüenta anos da oficialização do sistema de educação no Brasil (Decreto de 1759 do Marquês de Pombal) e no mês em que um dos instrumentos de avaliação da educação nacional invade a cena dos noticiários pela suspeita de baixa isenção em seus procedimentos, um incidente localizado no pequeníssimo aeroporto do menor estado da federação cruza, de modo um tanto perverso, reflexões nascidas nas diversas instâncias de estudo da educação brasileira.
Num dos mais concorridos vestibulares do Brasil, candidatos de vários estados aspiram a uma vaga na Universidade Federal de Sergipe, disputando, muitos deles, durante anos seguidos, um lugar de um dos maiores departamentos desta instituição pública de ensino superior, maior em número de alunos, docentes, aulas ministradas, formandos etc - o Departamento de Medicina.
Em geral, vencem essa maratona os candidatos mais bem preparados. O que não quer dizer que os reprovados, ou não classificados, não tenham se esforçado – e muito. Mas que os que chegam a ocupar aqueles bancos escolares são os que foram efetivamente preparados para passar pela duríssima seleção; aqueles que, em geral, cursaram seu ensino fundamental e médio em instituições privadas, cujas altas mensalidades (principalmente, se colocadas na proporção dos salários pagos a professores, funcionários, trabalhadores de empresas públicas e privadas, dos diversos setores, da capital e região metropolitana; do interior, nem se fala...) lhes deram direito a um treinamento de rigor quase militar: horas e horas de estudo, de aulas expositivas, de técnicas de memorização – macetes, musiquinhas tolas para decorar fórmulas complexas – mediocridade disfarçada de esperteza; exercícios repetidos à exaustão – metodologia de rolo compressor – finais de semana inteiros dedicados a devorar apostilas insípidas, a simular provas, a comparar resultados – os seus com os de outros, os seus de hoje com os de ontem – em atividades massacrantes que, dentre outras coisas, os colocavam em permanente estado de ansiedade, os atiravam da euforia dos bons resultados à frustração nos testes em que não iam bem, mexiam com sua auto-estima, desestabilizavam seus humores. Enquanto isso, suas vidas passavam, sem se darem conta.
Mas, enfim, chegaram lá. Muitos da mesma escola seleta, da mesma superturma. Não é surpresa se encontrarem nas salas de aula das disciplinas do curso de Medicina classes inteiras de colegas de toda a educação básica, alunos que se conhecem desde o jardim de infância. Jovens que, à maneira do best seller dos anos oitenta, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, sabiam desde os oito anos de idade que seriam médicos. E que, para ser médico, num futuro que, à época, poderia parecer longínquo, teriam que ser o número um sempre, desde então. E que, desde então, colocaram em foco o domínio de um jogo que lhes garantiria, numa só tacada, a vaga no curso de Medicina numa instituição pública de educação superior – a mais prestigiada – e, como conseqüência, um lugar de destaque na sociedade sergipana, cujo usufruto de um título de “doutor” e conseqüente acesso a numerosos bens de consumo lhes garantiriam a recompensa por anos de trabalho árduo na escola e a satisfação de seus pais por terem dado a melhor educação ao seu filho.
No caso da médica que, no aeroporto de Aracaju, protagonizou um curta-metragem de péssimo gosto veiculado na Internet, além da conquista desse sonho de várias gerações de familiares, tinha também o de um casamento, com direito a príncipe encantado e lua de mel “no estrangeiro”. Epíteto de “doutora” acompanhado do de “esposa”, com direito a passaporte carimbado são, de fato, muitas conquistas acontecendo a um só tempo.
Mas no meio do caminho havia uma pedra.
A pedra em seu caminho foi o entrave à realização do conto de fadas da moça. E provavelmente não foi causado – apenas – conforme alegado por seu advogado de defesa, pelo estresse que sofreu por tanta felicidade junta.
Foi algo anterior e muito mais complexo.
Sem invadir levianamente o terreno pouco familiar das teorias do comportamento, já que o episódio é um prato cheio para psicólogos e demais interessados nas ações e reações humanas, fico com uma evidência cuja natureza tem ocupado, pelo menos, meus últimos quinze anos de estudos e prática profissional: a educação de crianças e jovens. Dito isto, avanço afirmando que a pedra no caminho da médica recém-formada e recém-casada resulta da precária apropriação que tem realizado, no decorrer do seu percurso formativo, das referências conceituais recebidas da família/escola/sociedade.
De fato, a moça deve ter sido filha obediente, boa aluna, amiga legal, em toda sua infância e adolescência. O sucesso inegável na prova objetiva, somativa, do vestibular que prestou, também, é sinal de esforço, disciplina, concentração. O casamento, provavelmente um sonho cultivado há muito tempo e compartilhado por outras jovens de sua idade, também diz alguma coisa a respeito de sua criação e formação familiar.
Mas, francamente, a moça não deve ter feito direito seus deveres de casa.
Por exemplo, se tivesse lido, bem, o bilhete de passagem que adquiriu, teria aprendido que a antecedência de check-in para vôo nacional é de uma hora e para vôo internacional, de duas.
Se tivesse lido os jornais dos últimos meses, teria se dado conta de que, atualmente, o chefe de estado mais poderoso do planeta é negro.
Se tivesse acompanhado um pouco das chamadas “atualidades”, que também é matéria dos concursos públicos, saberia que o presidente de seu país, já em seu segundo mandato, tem origem pobre, não ostenta diploma de ensino superior, embora os investimentos que têm feito em educação, inclusive na “superior”, revelem uma atenção especial a esse setor. Passível de críticas de diversos grupos, a que todo administrador da coisa pública certamente está sujeito, foi chamado de The Man por aquele chefe de estado mais poderoso do mundo. Uma expressão que, em inglês, quer dizer, mais ou menos, “O Cara”, com certeza não por sua origem ou pelo jeitão coloquial – em geral, pouco comuns em um estadista – mas pelo prestígio internacional que tem adquirido em sua trajetória.
Oh, mas a moça precisava relaxar! Se ela tivesse então, ao menos, visto um pouco da teledramaturgia nacional recente, a boa e velha novela das oito, veria que já existe uma Helena, do Manoel Carlos, moradora do Leblon, musa da glamourosa cidade de Búzios,(que já teve Brigitte Bardot como musa) que é (!) negra. Cuja interpretação coube à atriz que já foi protagonista em outra época, dando vida à Xica da Silva, a escrava tornada princesa à força dos diamantes, no Arraial do Tijuco ou Diamantina do período colonial – essa aula de História a doutora deve ter perdido.
Mas, com certeza, leu Machado de Assis. Porque o vestibular a obrigou. E será que não reparou, na leitura de sua biografia, que o maior escritor brasileiro de todos os tempos, fundador da Academia Brasileira de Letras era (!) negro?
Fragmentos de informação, pequenos detalhes que a escola deixou passar, ou que a leitura apressada dos textos dos livros, e dos textos da vida, não captou. Referências subliminares que os currículos formais não fizeram questão de ressaltar. E tampouco a leitora, de nível superior, fez questão de se apropriar: temas transversais, ligados ao momento histórico vivido pelo país e pelo mundo, tópicos de estudo sobre diversidade, tolerância, civilidade, educação social.
É fato que a moça tentou se redimir: à maneira das meninas da escola primária, surpreendidas em uma travessura qualquer na hora do recreio, pediu desculpas ao coleguinha. Mas foi de costas, na TV. Talvez para não prejudicar sua imagem de profissional da saúde (em geral, preocupados com o bem-estar coletivo). Só que, quando insultou o rapaz, estava de frente, aos berros, atirando ao chão objetos do guichê da companhia aérea, em sua fúria desmedida por ouvir, talvez como poucas vezes em sua vida, um não. E tampouco se importou de se declarar médica, na ocasião. Não parecia importar-se com o impacto de suas ações sobre sua carreira. Sua profissão parecia estar, pelo contrário, a serviço de uma “satisfação imediata ou seu dinheiro de volta”.
No calor da emoção, também, não tinha consciência de que havia uma câmera apontada para ela. (Nestes tempos de big brother, para o bem e para o mal, há sempre uma câmera atenta, à espera de uma imagem (in)digna de ser reproduzida. Às vezes, por sorte, a lente mira os infratores, os que têm algo a esconder. Como aqueles policiais lá do Rio de Janeiro, que deixaram o coordenador da ONG AfroReggae, educador social atuante, agonizar até a morte, depois de sofrer assalto, agressão, com o requinte de agentes da lei lhe subtraindo os pertences que os ladrões deixaram para trás.
Ainda bem que a mesma câmera que registra caras e bundas, registra coisas bem mais vergonhosas, criminosas e passíveis de punição (cujos processos, no caso dos dois crimes – omissão de socorro e racismo – faremos questão de acompanhar, pelo mesmo monitor indiscreto).
Neste ano, que a educação escolar no Brasil completa dois séculos e meio, especialmente neste mês de novembro, em que se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra, meu recado, minha admiração vai para a família que educou, muito bem, o funcionário da companhia aérea que atendeu à doutora.
Para mim, de fato, ele também é O Cara!
Currículo
MARIA APARECIDA SILVA RIBEIRO é Doutora em Letras pela PUC-RIO, Professora Adjunta do Departamento de Letras da UFS. Colaboradora do Programa Nacional de Inclusão de Jovens, PROJOVEM URBANO.
MARIA APARECIDA SILVA RIBEIRO é Doutora em Letras pela PUC-RIO, Professora Adjunta do Departamento de Letras da UFS. Colaboradora do Programa Nacional de Inclusão de Jovens, PROJOVEM URBANO.